segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A eleição de Gabriel Boric no Chile e o surgimento de uma nova "onda rosa" na América Latina

Por Marcello Freitas@MSoufrei


No último domingo, dia 19 de dezembro de 2021, Gabriel Boric venceu as dramáticas eleições presidenciais do Chile. Até a liberação dos resultados das urnas ainda havia grande incerteza em relação ao desfecho de uma corrida eleitoral extremamente acirrada e polarizada. Às vésperas do dia da votação o esquerdista Boric e seu adversário de extrema-direita - e pinochetista - José Antonio Kast (que chegou a se promover como o "Bolsonaro" chileno) ainda apareciam empatados em quase todas as pesquisas - o que ampliava as incertezas e as tensões em torno de quem seria o novo presidente chileno. Além do fato de tais eleições estarem envoltas em um complexo contexto político, pautado pelos levantes populares de 2019 (contra o desgoverno do direitista Sebastián Piñera) e a expectativa em torno da confecção de uma nova constituição para o país (possibilitadas pela aprovação de uma assembleia constituinte).

Por estes motivos, a vitória avassaladora de Boric, com quase 56% dos votos válidos, e em 11 das 16 regiões do Chile, representou uma auspiciosa surpresa e um importante marco na história do Chile, pelo seu potencial de pôr um fim ao legado de Pinochet e colocar, de vez, o Chile no mapa da esquerda latino-americana. Com isso, fica a pergunta, será que a vitória de Boric confirma o surgimento de uma nova "onda rosa" na América Latina - ou seja, uma sucessão de vitórias de candidatos progressistas e de esquerda na região -, pondo fim a ascensão da extrema-direita na região?

Antes de refletir melhor sobre essa questão é interessante destacar algumas outras características interessantes da vitória de Boric, as quais reforçam seu peso simbólico. Boric, com seus 35 anos, se tornou o presidente eleito mais jovem do Chile, além de ter sido responsável por atrair um contingente inédito de chilenos às urnas (em torno de 8 milhões de pessoas). Um fato bastante significativo para um país em que a votação não é obrigatória e que a maioria da população vinha perdendo a crença na política e no poder do voto. 


Boric começou a sua carreira política como um combativo líder estudantil. Atuou com destaque nas grandes ondas de protestos de estudantes de 2011, que tinham como principal pauta a democratização do ensino universitário no Chile. Em 2019, repetiu essa atuação como uma das figuras centrais dos "estallidos" (as grandes manifestações populares que pararam o país naquele ano) e um dos responsáveis pela viabilização da aprovação do plebiscito que criou a Assembleia Constituinte. Esse processo terá como principal consequência a redação da primeira Constituição democrática do Chile, desde que Pinochet havia liderado a derrubada do governo de Salvador Allende, em 1973, e imposto ao povo chileno uma Constituição desconectada dos anseios da classe trabalhadora e povos originários. 


Em paralelo, Boric teve uma rápida ascensão política. Após ter sido eleito deputado duas vezes, logrou encabeçar, em 2021, uma ampla coalizão de partidos denominada "Apruebo Dignidad" (em alusão à palavra de ordem das manifestações de 2019). A coalizão "Apruebo Dignidad", que também incorporou as pautas progressistas dos estallidos, é composta pela Convergência Social (partido de Boric), e mais outros quatros partidos: Comunes, Federacion Regionalista Verde Social, Partido Comunista de Chile e Revolucion Democratica. Formando, assim uma verdadeira frente ampla em prol da promoção da democracia, justiça social e desenvolvimento sustentável no Chile. Nesse sentido, Boric se elegeu com o compromisso de defender e consolidar a construção dessa nova Constituição (algo que poderia ser inviabilizado caso o pinochetista José Antonio Kast tivesse sido eleito.

A eleição de Boric se torna ainda mais emblemática se vista a partir de um contexto mais amplo. Nos últimos anos tem havido uma sucessão de vitórias de candidatos de esquerda em vários países latino-americanos; que aponta para uma reversão da forte guinada para a extrema direita em todo continente a partir do golpe que derrubou o governo de Zelaia em Honduras em 2010 (e dos outros subsequentes golpes). Esses foram os casos, por exemplo, da vitória de Lópes Obrador no México (2018), de Alberto Fernández na Argentina (2019); de Luis Arce na Bolívia (2020), Pedro Castillo no Peru (2021), de Xiomara Castro em Honduras (2021). Sem contar a emblemática resistência de Cuba e Venezuela às constantes pressões internacionais e iniciativas de desestabilização de seus governos, consolidando ambos os países como importantes bastiões da esquerda no continente.

E ainda há uma grande expectativa que a Colômbia também possa fazer parte desse processo. As últimas pesquisas demonstram que o candidato de centro esquerda Gustavo Petro (da coalização de movimentos sociais e partidos progressistas chamada "Pacto Histórico) lidera a intenção de votos para as eleições de 2022. A vitória de um esquerdista seria algo inédito para um país como a Colômbia, que sempre pendeu para a direita (apesar da forte resistência das guerrilhas de esquerda).


Luis Arce recebe a faixa presidencial em 2020.
Luis Arce recebe a faixa presidencial em 2020.


Vale destacar que Boric reconheceu a importância de sua trajetória política e eleição para a presidência do Chile dentro desse processo. Logo após a sua vitória ele fez seguinte declaração:


“Eu me sinto parte de uma tradição de esquerdismo na América Latina e espero que consiga fomentar uma nova cooperação, a partir do Sul, para enfrentar os desafios que toda a humanidade tem pela frente"


Vale aqui relembrar a importância da "onda rosa" na América Latina. Onda rosa foi o termo usado para retratar a ascensão de sucessivos governos de esquerda na América Latina pela via democrática (e não pela revolução) ao longo da primeira década do novo milênio. Essa onda foi desencadeada pelo fracasso da implantação de reformas neoliberais e políticas de austeridade por governos de direita na região ao longo da década de 1990. Portanto, ela foi, em grande medida, uma resposta popular aos governos neoliberais que promoveram recessão e profunda crises sociais em seus respectivos países. E, em grande medida, possibilitada pelo desvio da atenção do governo norte-americano para o combate do terrorismo global e as guerras que os E.U.A. se envolveram no Oriente Médio (Afeganistão em 2001 e Iraque em 2003).


Uma característica comum dos governos progressistas que fizeram parte dessa onda foi o abandono da via revolucionária para a chegada ao poder (que era o método tradicionalmente almejado pela esquerda marxista), além da incorporação de uma postura mais moderada (mais associada com a social-democracia), que visava humanizar o capitalismo e não uma ruptura total com ele. Daí a ideia de uma onda "rosa", e não vermelha. 
 
Esse processo foi particularmente intenso na América do Sul. Na verdade, a primeira manifestação dessa onda ocorreu em 1998, na Venezuela, quando Hugo Chávez chegou ao poder pela via eleitoral - após uma tentativa fracassada de tomar o poder por meio de um levante militar. Em seguida foi a vez da Argentina, que em 2003 elegeu Néstor Kirchner para presidente. No mesmo ano Lula também assumia a presidência do Brasil. Em 2006 Evo Morales chegava à presidência da Bolívia, representando a nação Aymara e os demais povos originais da região. Também em 2006 a socialista Michelle Bachelet assumia a presidência do Chile. Em 2007 foi a vez do Equador, quando Rafael Correia assumiu a presidência do país. Em 2008 Fernando Lugo assumia a presidência do Paraguai. Finalmente, em 2010, dois militantes de esquerda, que se juntaram à luta armada contra a ditadura (e que foram presos e torturados por elas), chegaram à presidência de seus respectivos países pela via democrática. José Mujica no Uruguai e Dilma Rousseff no Brasil.

Oliver Stone registrou esse momento singular na história da América Latina no documentário "South of the Border", lançado em 2009. Nele, Stone demonstrou o quanto esses governos progressistas representavam uma ruptura com o tradicional reacionarismo das classes dominantes da região e promoviam uma verdadeira revolução social e democrática em seus países. De fato, esse foi um período de inédita integração regional (representada principalmente pelo reforço do Mercosul e criação da UNASUL); de intensa coordenação política entre os presidentes progressistas sul-americanos; maior autonomia para lidar com as crises regionais; além de um maior desenvolvimento e projeção internacional para muitos desses países.  

E esse processo mais uma vez parece se conectar fortemente com o Brasil. Nesse sentido, é muito interessante o fato de Lula ampliar a sua força política no Brasil e se consolidar com o grande favorito para vencer as eleições presidenciais de 2022. Essa projeção de Lula é ainda mais emblemática quando se leva em consideração a ação conjunta da Lava-Jato com o ex-Juiz Sérgio Moro, que levou à prisão ilegal do ex-presidente brasileiro, o reforço do antipetismo e a ascensão da extrema-direita no Brasil (expressada, principalmente, pela eleição de Bolsonaro em 2018). Lula - juntamente com Chávez - representou um forte centro gravitacional da "onda rosa", e, caso de reeleja, pode voltar a exercer esse papel na regional. 




Um interessante sinal nessa direção (e de quanto Lula continua sendo uma grande referência para a esquerda latino-americana) é o quanto Boric replica algumas características marcantes de Lula. Assim como Lula, Boric também adota uma posição moderada e conciliadora. Assim que foi eleito, Boric garantiu que vai dialogar com os diferentes setores políticos, inclusive com a extrema direita e o próprio Sebastián Piñnera (atual presidente do Chile). Outra interessante coincidência foi que Boric, em seu primeiro discurso como presidente do Chile, evocou o antigo lema da eleição de Lula em 2003, dirigindo-se para uma multidão de chilenos, o novo presidente disse:  

"Nosso governo conversará permanentemente com seu povo. O povo entrará no Palácio La Moneda. Hoje, a esperança venceu o medo."

 

Em um artigo que escrevi em 2017, junto com Danilo Bragança, prevemos que essa tendência de guinada à esquerda na América Latina seria uma consequência natural da emergência de governos de extrema-direita e profusão de movimentos neofascistas em diversos países latino-americanos. Esse movimento pendular compensatório seria ainda reforçado pela incapacidade de governos alinhados com essa vertente política em dar conta dos problemas estruturais e sociais dos países da região, principalmente por não ter base popular e apostar cegamente num projeto ultra neoliberal ultrapassado. 

O passado colonial, perfil periférico e histórico de desigualdade social dos países latino-americanos são fatores que inevitavelmente empurram esses países para governos que priorizem projetos de desenvolvimento nacional, erradicação de pobreza e equalização de oportunidades. Já está comprovado que o neoliberalismo não tem resposta para essas questões e nem soluções factíveis para os principais anseios dos povos latinos - na verdade, ele acaba sempre agravando os seus problemas, ampliando as desigualdades e concentrando renda.

Um outro fator que inevitavelmente, empurraria esse pêndulo novamente para a esquerda era o fato de que a onda de extrema-direita que tomou a América Latina se originou num processo artificial, impulsionado por sucessivos golpes, que derrubaram os governos progressistas democraticamente eleitos na região (como o que derrubou a Dilma em 2016); manipulação da realidade; pela manipulação da opinião pública através da disseminação de Fake News e o discurso de ódio via redes sociais (expressado, por exemplo, no escândalo da Cambridge Analytica); e estimulado pela ascensão de Donald Trump ao poder. Portanto, um castelo de cartas que naturalmente seria derrubado quando os ventos da esquerda voltassem a soprar na região. 


Bandeira alternativa (proposta pelo presidente peruano Alan García) para aUNASUL.

Nesse sentido, a eleição de Boric de fato confirma a atual guinada à esquerda na América Latina. Ela representa um importante sinal de que sempre que o pêndulo apontar para a direita (ou extrema-direita), surgirá uma nova, e cada vez mais forte, onda empurrando a região cada vez mais para a esquerda. E, mais uma vez, esse caminho vem sendo percorrido tanto pela via democrática - apesar de a via revolucionária sempre permanecer como uma possibilidade. Agora, é aguardar que o Brasil novamente cumpra seu papel histórico e reforce a guinada regional à esquerda com a confirmação da eleição de Lula em 2022.


*Marcello Freitas é doutorando em Política Internacional pela Aberystwyth University. Tem como foco de pesquisa a diplomacia cultural. Sua dissertação de mestrado em Relações Internacionais teve como tema o universo da música na política externa brasileira. Também possui ampla experiência no campo prático da produção cultural. Vocalista da banda Nocomplai e baixista da banda Classe Z. Também se considera um músico, poeta, sonhador e esquerdista. 

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