segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A eleição de Gabriel Boric no Chile e o surgimento de uma nova "onda rosa" na América Latina

Por Marcello Freitas@MSoufrei


No último domingo, dia 19 de dezembro de 2021, Gabriel Boric venceu as dramáticas eleições presidenciais do Chile. Até a liberação dos resultados das urnas ainda havia grande incerteza em relação ao desfecho de uma corrida eleitoral extremamente acirrada e polarizada. Às vésperas do dia da votação o esquerdista Boric e seu adversário de extrema-direita - e pinochetista - José Antonio Kast (que chegou a se promover como o "Bolsonaro" chileno) ainda apareciam empatados em quase todas as pesquisas - o que ampliava as incertezas e as tensões em torno de quem seria o novo presidente chileno. Além do fato de tais eleições estarem envoltas em um complexo contexto político, pautado pelos levantes populares de 2019 (contra o desgoverno do direitista Sebastián Piñera) e a expectativa em torno da confecção de uma nova constituição para o país (possibilitadas pela aprovação de uma assembleia constituinte).

Por estes motivos, a vitória avassaladora de Boric, com quase 56% dos votos válidos, e em 11 das 16 regiões do Chile, representou uma auspiciosa surpresa e um importante marco na história do Chile, pelo seu potencial de pôr um fim ao legado de Pinochet e colocar, de vez, o Chile no mapa da esquerda latino-americana. Com isso, fica a pergunta, será que a vitória de Boric confirma o surgimento de uma nova "onda rosa" na América Latina - ou seja, uma sucessão de vitórias de candidatos progressistas e de esquerda na região -, pondo fim a ascensão da extrema-direita na região?

Antes de refletir melhor sobre essa questão é interessante destacar algumas outras características interessantes da vitória de Boric, as quais reforçam seu peso simbólico. Boric, com seus 35 anos, se tornou o presidente eleito mais jovem do Chile, além de ter sido responsável por atrair um contingente inédito de chilenos às urnas (em torno de 8 milhões de pessoas). Um fato bastante significativo para um país em que a votação não é obrigatória e que a maioria da população vinha perdendo a crença na política e no poder do voto. 


Boric começou a sua carreira política como um combativo líder estudantil. Atuou com destaque nas grandes ondas de protestos de estudantes de 2011, que tinham como principal pauta a democratização do ensino universitário no Chile. Em 2019, repetiu essa atuação como uma das figuras centrais dos "estallidos" (as grandes manifestações populares que pararam o país naquele ano) e um dos responsáveis pela viabilização da aprovação do plebiscito que criou a Assembleia Constituinte. Esse processo terá como principal consequência a redação da primeira Constituição democrática do Chile, desde que Pinochet havia liderado a derrubada do governo de Salvador Allende, em 1973, e imposto ao povo chileno uma Constituição desconectada dos anseios da classe trabalhadora e povos originários. 


Em paralelo, Boric teve uma rápida ascensão política. Após ter sido eleito deputado duas vezes, logrou encabeçar, em 2021, uma ampla coalizão de partidos denominada "Apruebo Dignidad" (em alusão à palavra de ordem das manifestações de 2019). A coalizão "Apruebo Dignidad", que também incorporou as pautas progressistas dos estallidos, é composta pela Convergência Social (partido de Boric), e mais outros quatros partidos: Comunes, Federacion Regionalista Verde Social, Partido Comunista de Chile e Revolucion Democratica. Formando, assim uma verdadeira frente ampla em prol da promoção da democracia, justiça social e desenvolvimento sustentável no Chile. Nesse sentido, Boric se elegeu com o compromisso de defender e consolidar a construção dessa nova Constituição (algo que poderia ser inviabilizado caso o pinochetista José Antonio Kast tivesse sido eleito.

A eleição de Boric se torna ainda mais emblemática se vista a partir de um contexto mais amplo. Nos últimos anos tem havido uma sucessão de vitórias de candidatos de esquerda em vários países latino-americanos; que aponta para uma reversão da forte guinada para a extrema direita em todo continente a partir do golpe que derrubou o governo de Zelaia em Honduras em 2010 (e dos outros subsequentes golpes). Esses foram os casos, por exemplo, da vitória de Lópes Obrador no México (2018), de Alberto Fernández na Argentina (2019); de Luis Arce na Bolívia (2020), Pedro Castillo no Peru (2021), de Xiomara Castro em Honduras (2021). Sem contar a emblemática resistência de Cuba e Venezuela às constantes pressões internacionais e iniciativas de desestabilização de seus governos, consolidando ambos os países como importantes bastiões da esquerda no continente.

E ainda há uma grande expectativa que a Colômbia também possa fazer parte desse processo. As últimas pesquisas demonstram que o candidato de centro esquerda Gustavo Petro (da coalização de movimentos sociais e partidos progressistas chamada "Pacto Histórico) lidera a intenção de votos para as eleições de 2022. A vitória de um esquerdista seria algo inédito para um país como a Colômbia, que sempre pendeu para a direita (apesar da forte resistência das guerrilhas de esquerda).


Luis Arce recebe a faixa presidencial em 2020.
Luis Arce recebe a faixa presidencial em 2020.


Vale destacar que Boric reconheceu a importância de sua trajetória política e eleição para a presidência do Chile dentro desse processo. Logo após a sua vitória ele fez seguinte declaração:


“Eu me sinto parte de uma tradição de esquerdismo na América Latina e espero que consiga fomentar uma nova cooperação, a partir do Sul, para enfrentar os desafios que toda a humanidade tem pela frente"


Vale aqui relembrar a importância da "onda rosa" na América Latina. Onda rosa foi o termo usado para retratar a ascensão de sucessivos governos de esquerda na América Latina pela via democrática (e não pela revolução) ao longo da primeira década do novo milênio. Essa onda foi desencadeada pelo fracasso da implantação de reformas neoliberais e políticas de austeridade por governos de direita na região ao longo da década de 1990. Portanto, ela foi, em grande medida, uma resposta popular aos governos neoliberais que promoveram recessão e profunda crises sociais em seus respectivos países. E, em grande medida, possibilitada pelo desvio da atenção do governo norte-americano para o combate do terrorismo global e as guerras que os E.U.A. se envolveram no Oriente Médio (Afeganistão em 2001 e Iraque em 2003).


Uma característica comum dos governos progressistas que fizeram parte dessa onda foi o abandono da via revolucionária para a chegada ao poder (que era o método tradicionalmente almejado pela esquerda marxista), além da incorporação de uma postura mais moderada (mais associada com a social-democracia), que visava humanizar o capitalismo e não uma ruptura total com ele. Daí a ideia de uma onda "rosa", e não vermelha. 
 
Esse processo foi particularmente intenso na América do Sul. Na verdade, a primeira manifestação dessa onda ocorreu em 1998, na Venezuela, quando Hugo Chávez chegou ao poder pela via eleitoral - após uma tentativa fracassada de tomar o poder por meio de um levante militar. Em seguida foi a vez da Argentina, que em 2003 elegeu Néstor Kirchner para presidente. No mesmo ano Lula também assumia a presidência do Brasil. Em 2006 Evo Morales chegava à presidência da Bolívia, representando a nação Aymara e os demais povos originais da região. Também em 2006 a socialista Michelle Bachelet assumia a presidência do Chile. Em 2007 foi a vez do Equador, quando Rafael Correia assumiu a presidência do país. Em 2008 Fernando Lugo assumia a presidência do Paraguai. Finalmente, em 2010, dois militantes de esquerda, que se juntaram à luta armada contra a ditadura (e que foram presos e torturados por elas), chegaram à presidência de seus respectivos países pela via democrática. José Mujica no Uruguai e Dilma Rousseff no Brasil.

Oliver Stone registrou esse momento singular na história da América Latina no documentário "South of the Border", lançado em 2009. Nele, Stone demonstrou o quanto esses governos progressistas representavam uma ruptura com o tradicional reacionarismo das classes dominantes da região e promoviam uma verdadeira revolução social e democrática em seus países. De fato, esse foi um período de inédita integração regional (representada principalmente pelo reforço do Mercosul e criação da UNASUL); de intensa coordenação política entre os presidentes progressistas sul-americanos; maior autonomia para lidar com as crises regionais; além de um maior desenvolvimento e projeção internacional para muitos desses países.  

E esse processo mais uma vez parece se conectar fortemente com o Brasil. Nesse sentido, é muito interessante o fato de Lula ampliar a sua força política no Brasil e se consolidar com o grande favorito para vencer as eleições presidenciais de 2022. Essa projeção de Lula é ainda mais emblemática quando se leva em consideração a ação conjunta da Lava-Jato com o ex-Juiz Sérgio Moro, que levou à prisão ilegal do ex-presidente brasileiro, o reforço do antipetismo e a ascensão da extrema-direita no Brasil (expressada, principalmente, pela eleição de Bolsonaro em 2018). Lula - juntamente com Chávez - representou um forte centro gravitacional da "onda rosa", e, caso de reeleja, pode voltar a exercer esse papel na regional. 




Um interessante sinal nessa direção (e de quanto Lula continua sendo uma grande referência para a esquerda latino-americana) é o quanto Boric replica algumas características marcantes de Lula. Assim como Lula, Boric também adota uma posição moderada e conciliadora. Assim que foi eleito, Boric garantiu que vai dialogar com os diferentes setores políticos, inclusive com a extrema direita e o próprio Sebastián Piñnera (atual presidente do Chile). Outra interessante coincidência foi que Boric, em seu primeiro discurso como presidente do Chile, evocou o antigo lema da eleição de Lula em 2003, dirigindo-se para uma multidão de chilenos, o novo presidente disse:  

"Nosso governo conversará permanentemente com seu povo. O povo entrará no Palácio La Moneda. Hoje, a esperança venceu o medo."

 

Em um artigo que escrevi em 2017, junto com Danilo Bragança, prevemos que essa tendência de guinada à esquerda na América Latina seria uma consequência natural da emergência de governos de extrema-direita e profusão de movimentos neofascistas em diversos países latino-americanos. Esse movimento pendular compensatório seria ainda reforçado pela incapacidade de governos alinhados com essa vertente política em dar conta dos problemas estruturais e sociais dos países da região, principalmente por não ter base popular e apostar cegamente num projeto ultra neoliberal ultrapassado. 

O passado colonial, perfil periférico e histórico de desigualdade social dos países latino-americanos são fatores que inevitavelmente empurram esses países para governos que priorizem projetos de desenvolvimento nacional, erradicação de pobreza e equalização de oportunidades. Já está comprovado que o neoliberalismo não tem resposta para essas questões e nem soluções factíveis para os principais anseios dos povos latinos - na verdade, ele acaba sempre agravando os seus problemas, ampliando as desigualdades e concentrando renda.

Um outro fator que inevitavelmente, empurraria esse pêndulo novamente para a esquerda era o fato de que a onda de extrema-direita que tomou a América Latina se originou num processo artificial, impulsionado por sucessivos golpes, que derrubaram os governos progressistas democraticamente eleitos na região (como o que derrubou a Dilma em 2016); manipulação da realidade; pela manipulação da opinião pública através da disseminação de Fake News e o discurso de ódio via redes sociais (expressado, por exemplo, no escândalo da Cambridge Analytica); e estimulado pela ascensão de Donald Trump ao poder. Portanto, um castelo de cartas que naturalmente seria derrubado quando os ventos da esquerda voltassem a soprar na região. 


Bandeira alternativa (proposta pelo presidente peruano Alan García) para aUNASUL.

Nesse sentido, a eleição de Boric de fato confirma a atual guinada à esquerda na América Latina. Ela representa um importante sinal de que sempre que o pêndulo apontar para a direita (ou extrema-direita), surgirá uma nova, e cada vez mais forte, onda empurrando a região cada vez mais para a esquerda. E, mais uma vez, esse caminho vem sendo percorrido tanto pela via democrática - apesar de a via revolucionária sempre permanecer como uma possibilidade. Agora, é aguardar que o Brasil novamente cumpra seu papel histórico e reforce a guinada regional à esquerda com a confirmação da eleição de Lula em 2022.


*Marcello Freitas é doutorando em Política Internacional pela Aberystwyth University. Tem como foco de pesquisa a diplomacia cultural. Sua dissertação de mestrado em Relações Internacionais teve como tema o universo da música na política externa brasileira. Também possui ampla experiência no campo prático da produção cultural. Vocalista da banda Nocomplai e baixista da banda Classe Z. Também se considera um músico, poeta, sonhador e esquerdista. 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Lula no Podpah e a estratégia de comunicação do PT

  Por Marcello Freitas


No dia 2 de dezembro de 2021, Lula participou do podcast “Podpah”, o maior do Brasil, gerando grande impacto. Na ocasião, foram quase 300 mil pessoas assistindo, em tempo real, ao bate papo de Lula com Igão e Mítico e mais de 2.187.830 milhões de acessos ao longo do programa. Após a transmissão ao vivo, o programa continuou gerando grande repercussão. Foram mais de 3,6 milhões de visualizações em menos de 24 horas, além de ranquear entre os trending topics do Twitter por mais de dois dias. Após 10 dias de sua estreia, o episódio 295 do “Podpah” já ultrapassou a marca de 8 milhões de visualizações, levando-o a alcançar o recorde nacional de público de um podcast.

Esses números impressionantes demonstram o quanto este evento representou uma poderosa plataforma para que Lula reforçasse a sua presença digital e promovesse para um amplo público a sua visão de mundo, programa político e imagem pessoal. Tal feito parece revelar um novo approach da comunicação estratégica do PT, que estaria voltado para dar um maior destaque a plataformas digitais e redes sociais como pontas de lança da campanha eleitoral de Lula em 2022.



Não há dúvida de que amplificar a projeção de Lula na internet é um passo fundamental para expandir o alcance de sua campanha nas redes sociais, e, a partir daí, dar ao PT melhores condições para neutralizar o discurso Bolsonarista e a sua máquina de propaganda. A internet é um poderoso meio para Lula falar diretamente com um público mais jovem, com pouca informação sobre a trajetória política de Lula e com pouca memória afetiva em relação a era PT. Nesse sentido, o ambiente digital representa um dos principais campos de batalhas das eleições de 2022 e uma eficiente estratégia para as redes sociais representará um fator decisivo para o sucesso da campanha de Lula.

A participação de Lula no Podpah pode não apenas indicar o funcionamento dessa nova estratégia de comunicação do PT, como ter sido um importante ponto de inflexão dentro dela. Algumas características especiais do programa reforçam o seu papel estratégico. Além de possuir mais de 4,4 milhões inscritos, o canal também tem uma forte conexão com uma juventude de periferia. Uma conexão expressada principalmente pelo perfil e história de vida dos criadores do canal (que pode ser conferida no documentário sobre o canal). Igão e Mítico são dois icônicos representantes da atual tendência de jovens empreendedores, muitos deles de periferia, em buscar criar canais no Youtube como um meio viável de ganhar fama e gerar renda.

Seguindo essa tendência, os dois amigos fundaram o Podpah em 2020, como um desdobramento da carreira que ambos, de forma individual, vinham construindo no Youtube. Rapidamente o canal alcançou um sucesso estrondoso, chegando a se tornar, em 2021, o maior podcast do Brasil – o que impulsionou os dois amigos a se tornarem celebridades emergentes. Essas características tornaram o Podpah não apenas uma poderosa vitrine para a imagem e as ideias de Lula, como um eficiente meio de Lula se reconectar com uma juventude periférica – ou seja, trilhar o caminho, pela via digital, de reconexão como as bases (conforme cobrado por Mano Brown).




Um fato curioso é que o Podpah nasceu incubado dentro de um outro podcast de grande sucesso chamado Flow podcast. O Flow é outro fenômeno da comunicação brasileira. Fundado em 2018, o canal teve uma ascensão meteórica, com milhões de inscritos e grande volume de views. O Flow rapidamente se consolidou como o maior podcast do Brasil, até ser ultrapassado pelo Podpah em 2021. Por sua vez, o Podpah se valeu da estrutura, do formato e, em grande medida, da imensa audiência do Flow para decolar.

Eventualmente, o grande sucesso do Podpah levou ao rompimento entre os dois programas. E, apesar de seus membros recorrentemente afirmar que esse rompimento foi amigável, ele na verdade gerou grande ressentimento e uma velada rivalidade entre os dois canais (reforçados pelo contínuo sucesso do Podpah). Contudo, ambos os canais tentam manter uma certa cordialidade, além de manterem uma identidade visual bastante semelhante, apesar de approaches relativamente diferentes.

O curioso é que, na verdade, a assessoria de Lula vinha negociando a participação do ex-presidente no Flow e não do Podpah. Conforme revelado por Monark (fundador do canal) em 14 de outubro, durante entrevista ao DCM, esta negociação estava avançada e a participação de Lula no Flow estava próxima de acontecer. O que tornou o anúncio da entrevista de Lula no Podpah inesperado e um tanto surpreendente. Na minha visão, esta mudança repentina de plataforma é outro importante fator que demonstra o quanto o sucesso da participação de Lula no Podpah é parte de uma bem pensada estratégia de comunicação do PT para a campanha de Lula na internet e não fruto de um mero acaso.

Antes de explicar melhor este ponto, é importante destacar as convergências entre o Flow e o Bolsonarismo. Monark nunca escondeu que foi um eleitor convicto do Bolsonaro (apesar de agora dizer que está arrependido) e, por diversas vezes, fez questão de declarar veementemente o seu antipetismo e sua aversão à Lula. Além de expressar em seu canal uma visão ultra neoliberal e superficial sobre a realidade brasileira, misturada com uma defesa à ignorância, a não política, ao armamentismo e à uma noção distorcida da liberdade de expressão (que incluiria o direito a mentir, ofender e descriminar). O interessante é que, muitas vezes, Monark busca camuflar a sua visão ultraconservadora e liberal através de um "libertarismo" superficial, pautado principalmente pela defesa da liberalização das drogas e emancipação individual pela via digital.

É também notório que no início de suas atividades, o Flow era um reduto de Bolsonaristas e negacionistas, os quais contribuíram decisivamente para impulsionar o alcance do canal na internet. O canal chegou a entrevistar figuras como Eduardo Bolsonaro e Luciano Hang - que são pessoas que normalmente só circulam e dão entrevistas nas redes Bolsonaristas. Contudo, é notório que a partir de 2021 o canal passou a estar mais aberto à representantes do bloco progressista; chegando mesmo a entrevistar figuras como Haddad, Boulos e Marcello Freixo. Contudo, é difícil afirmar se essa inflexão é uma tentativa real de ampliação do foco do programa ou uma mera estratégia de Marketing.



De qualquer forma, é um tanto curiosa a iniciativa da assessoria de Lula negociar a participação do ex-presidente em um canal com este perfil. Eu acredito que, na verdade, tal iniciativa é não apenas uma importante expressão do tradicional pragmatismo do PT, mas de uma renovada compreensão da importância desse tipo de plataforma digital para a projeção de candidaturas políticas na era da informação. Na minha visão, esses são dois pilares fundamentais da estratégia de comunicação do PT para as eleições de 2022.

Aqui é importante destacar que essa estratégia já havia se manifestado na inesperada decisão de Lula de conceder uma entrevista à Reinaldo Azevedo – um tradicional opositor ao PT e ferrenho crítico de Lula (apesar de, recentemente, ter revisto esta posição). E é possível dizer que foi justamente esse fato inusitado, envolto em tantas contradições, que garantiu o grande sucesso dessa entrevista; que chegou a mais de 2 milhões de views em menos de 24 horas e superou em muito a audiência da live do Bolsonaro (que ocorreu no mesmo horário). A grande repercussão positiva dessa entrevista representou umas das primeiras grandes vitórias de Lula em seu embate digital contra o Bolsonarismo, além de um importante exemplo da eficácia dessa nova estratégia de comunicação PT no ambiente digital.




Nesse sentido, a decisão da assessoria do Lula de levar o ex-presidente ao Flow pode ser considerada um importante novo desdobramento dessa estratégia. Contudo, um inesperado revês acabou levando a equipe de Lula a mudar seus planos e acabar fechando a participação de Lula no Podpah, não no Flow. É possível especular que um fator que pode ter contribuído para este desfecho tenha sido a grande repercussão negativa de declarações polêmicas de Monark no Twitter no início de novembro. Em uma série de postagens nesta rede social, Monark relativizou o racismo ao afirmar que a expressão de um pensamento racista não deveria ser considerada crime por constituir uma opinião individual. Segundo ele, em nome da “liberdade de expressão”, nenhuma opinião deveria ser cerceada ou criminalizada (mesmo que promovesse ideias terríveis). 

Esse posicionamento de Monark - em grande medida em linha com a ideologia Bolsonarista - não apenas foi expressado com grande convicção pelo youtuber, como foi reiterado por ele em diversas outras ocasiões. Esse evento acabou gerando uma grande comoção nas redes, chegando ao ponto de levar o iFood a romper a sua parceria com o Flow. Além de deixar de patrocinar o programa, o iFood publicou uma dura nota de repúdio contra o Flow, que expressava claramente que não compactuava com racismo. Sem dúvida nenhuma esse foi um fato que abalou a imagem do Flow não apenas com seus patrocinadores, mas com uma parcela considerável de seu público (conforme Ferréz explicou à Monark, durante entrevista no Flow). 

Este caso parece ter acendido a luz vermelha do radar do PT, levando a assessoria de Lula a não querer associar a imagem do ex-presidente a um canal envolto em tal polêmica. Se esse foi o caso ou não, o fato é que na semana seguinte a essa polêmica foi anunciado a participação de Lula no Podpah. Novamente, esta aparente mudança de planos reforça o caráter estratégico e sistemático do modelo de presença digital de Lula idealizado pelo PT. Essa reconfiguração da estratégia passava a deixar de lado uma plataforma com o estigma do Flow e passava a apostar no Podpah, um canal com um perfil mais condizente com os objetivos de campanha e imagem pessoal de Lula.



O grande sucesso e repercussão positiva da participação de Lula no Podpah confirmam o quão acertada foi tal decisão. De fato, o ambiente mais aberto e convidativo do Podpah possibilitou que Lula desenvolvesse um bate-papo descontraído com Mítico e Igão, o qual mostrou para a imensa audiência do canal sua faceta mais popular e humana. Além disso, o ambiente descontraído e amigável do programa possibilitou a Lula promover sua visão política de forma mais informal e didática. Durante a conversa, Lula falou de futebol, de sua infância difícil de fome e pobreza, de sua trajetória política, sua experiência como presidente do Brasil, dos desvios da Lava Jato, de como o tempo que passou preso injustamente o aprimorou como humano e aguçou ainda mais o seu desejo de governar (e transformar) o Brasil mais uma vez. 

Um aspecto marcante da entrevista foi a forte conexão que Lula estabeleceu com os apresentadores. Isso fez com que Igão e Mitico se sentissem à vontade o suficiente para perguntar ao ex-presidente como ele havia perdido o seu dedo e se pobre podia comer camarão. Lula respondeu a primeira pergunta com grande descontração, relatando a dor que sentiu ao ter o dedo decepado por uma prensa (enquanto trabalhava como torneiro mecânico). Por outro lado, Lula respondeu a outra pergunta como uma aula de marxismo prático, dizendo: “não só pode, com deve! Até porque é o trabalhador quem pega o camarão”. Todos esses fatores tornaram tal programa não só uma importante vitrine para a imagem de Lula como uma poderosa plataforma para Lula transmitir a sua mensagem política, de forma clara e direta, para milhões de brasileiros.



Por fim, o grande sucesso da participação de Lula no Podpah me faz concluir que o impacto dessa iniciativa pode ser atribuída a 3 principais fatores. O grande público e alcance que o programa já tem (o maior do Brasil). A grande popularidade de Lula (o primeiro nas intenções de voto). E, como venho tentando ressaltar, a eficiência de um novo approach da comunicação estratégica do PT para as eleições de 2022. Essa estratégia teria como meta, nessa fase inicial da corrida eleitoral, ampliar a projeção digital de Lula de forma paulatina e criteriosa, buscando os melhores meios e plataformas que ampliem exponencialmente o impacto de aparições pontuais e bombásticas. Criando, com isso, um contínuo hype em torno das atividades políticas de Lula, sem desgastar a sua imagem pessoal, nem super expor suas ideias – deixando esta tarefa para seus adversários (que acabam “morrendo pela língua”). Conforme demonstram as últimas pesquisas eleitorais (Ipec, Datafolha e Ipespe), parece que esta estratégia vem contribuindo para Lula consolidar a sua grande vantagem e, até mesmo, garantir uma vitória em primeiro turno. 



*Marcello Freitas é doutorando em Política Internacional pela Aberystwyth University. Tem como foco de pesquisa a diplomacia cultural. Sua dissertação de mestrado em Relações Internacionais teve como tema o universo da música na política externa brasileira. Também possui ampla experiência no campo prático da produção cultural. Vocalista da banda Nocomplai e baixista da banda Classe Z. Também se considera um músico, poeta, sonhador e esquerdista. 

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